domingo, 13 de junho de 2010

Uma versão poética de como os rios surgiram

No antigamente, o Diabo estava a morrer. Deus ficou aflito: sem o Demónio ele seria apenas metade. Foi então que Deus acorreu a curar o seu eterno inimigo. O que Deus, primeiro, fez foi beber água. Nesse tempo só havia mar. Ele bebeu dessa água salgada, cheia de alga e inorganismos. Deus teve alucinações e vomitou sobre o Universo. O vómito era ácido e os seres definharam, contaminados pelo cheiro nauseabundo. A água adoeceu, as plantas amarelaram. O gado começou a dar sangue em vez de leite. Deus enfraquecia que dava pena. Foi então, já cansado, que ele inventou os rios. Criou os rios com água vinda de suas mais longínquas forças, as veias de sua alma. Mas ele estava debilitado, incapaz de imensidões. Por isso, os rios não são tão infinitos como o mar. Aquela água doce, só de ser vista, revigorou a alma de Deus. Todavia, os rios a si mesmo não bastavam. Lhes fazia falta o mar, o lugar infinito. E a água voltou à água.

Mia Couto, O último voo do flamingo, p.124

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